Não é para desanimar, mas de tanto viver nessa vida de desenhadores, e agora na margem dessa vida, é possível perceber alguns padrões. Quem desenha *muito* (seja em quantidade ou qualidade), sempre desenhou muito (especialmente em quantidade). Tenho um colega de faculdade que publicou sua webcomic durante anos, depois publicou livros com elas e depois participou de um dos livros de homenagem ao Maurício de Souza. Sorte? Dom? Talvez um pouco de tudo... Somado ao fato de que do primeiro ao último dia de aula, minha maior lembrança da sua pessoa foi curvado sobre o caderno desenhando, desenhando, desenhando. Pessoas assim não estão por aí em fóruns perguntando como podem melhorar. Não estão baixando e-books com dicas, assistindo Sketchbook Tours no YouTube. Elas estão por aí... Melhorando. Lembro até de uma época em que ela parou a webcomic para estudar para concursos (até quem sabe muito não está livre da tristeza que pode ser tentar ganhar a vida nessa área). Não sei se essa história foi para frente, pois muitas tiras e publicações vieram depois disso então... Mesmo em dúvida, quem quer mesmo não consegue parar.
Para quem visita aqui há mais tempo -- se é que essas pessoas existem, assim como os unicórnios -- sabe que uma das minhas principais questões é: Por quê!? Por quê rabiscar essas coisas de pouca qualidade e proveito que saem do meu sketchbook? Eu ainda tenho esperanças de ganhar dinheiro com isso? Eu ainda acho que isso poderá um dia ser arte? Isso é arte? Saber isso realmente importa? Tenho tido algumas ideias com relação a tudo isso nos últimos tempos. Afinal: o mundo precisa de mais rascunhos mal feitos como esse?
Vamos começar com a pior hipótese (eu sempre estou melhor familiarizada com o *Dark Side*, rs). Não, o mundo não precisa de nenhuma dessas caquinhas que estamos fazendo em nosso sketchbooks. Assim sendo: E daí? Você não precisa do seu vizinho que estuda bateria no sábado de manhã, e eu não preciso da minha vizinha que canta sofrência desafinada todo dia de faxina. E tudo bem -- ele não está tocando bateria para você, nem ela está cantando para o deleite dos meus ouvidos. Eles estão, eu espero, fazendo isso porquê os deixa felizes e... É isso que importa!
Ainda estou internalizando aos poucos essa simples resposta, porque ela responde muita coisa. Trabalhei -- e trabalho ainda, devo deixar claro -- por muito tempo prestando serviço para corporações em Ensino à Distância. Qualquer serviço prestado nesse formato só existe na base da utilidade e da necessidade, se não for preciso, é cancelado e cortado. E por algum motivo, eu deixei que essa lógica se aplicasse a minha prática de desenho -- talvez porque durante muito tempo eu imaginasse que um dia poderia trabalhar em um emprego como ilustradora, atendendo solicitações... Então eu sempre fico pensando: "Qual a utilidade disso?", "Qual o valor disso perto do que é disponibilizado no mercado?", "Como isso está posicionado em toda prestação de serviço?"... E isso simplesmente não importa no curto prazo, ou seja, no cotidiano de rabiscar e seguir em frente.
A verdade final, é que os anos vão passar. Hoje eu tenho 36, mas sei que num piscar de olhos eu vou estar com 45, 60 anos (se tiver tanta sorte com tanto fast food envolvido). Será que eu quero -- ou você quer -- chegar aos 60 e ficar pensando em como estaria desenhando, o que teria feito, se tivesse sido mais comprometida nos 24 anos que separaram os 36 anos dos 60? Será que vale a pena parar algo que você gosta na sua vida porque você não sabe que utilidade isso possa ter para o mundo? Esse mesmo mundo que não está pagando as suas contas, lavando suas louças ou ajudando em casa.
Eu entendo os questionamentos. Trabalho como freelancer, em casa, cuidando de uma criança de 3 anos... É difícil cuidar da limpeza, da alimentação, das rotinas, do trabalho, dos imprevistos e se convencer que uma hora rabiscando no seu sketchbook, por nenhum dinheiro, reconhecimento ou recompensa é tão importante quanto uma pilha de roupa que precisa ser separada, lavada, passada e que não vai se resolver sozinha se você não der atenção... Mas sendo otimistas (mesmo): eu e você vamos morrer. E não vamos morrer numa hora conveniente, com tudo em ordem, a louça lavada, roupa separada, entregas em dia e com tudo certinho para todo mundo. Vai ser um estorvo (e a gente espera que seja uma tristeza tb) para os envolvidos, mas eles vão ter que lidar com isso e viver. Mas não tem boletim de realizações domésticas, familiares e profissionais. Ou será que você espera um lápide assim:
"Aqui jaz FULANO. Não perdeu tempo com rabiscos, nem aquarelas, nem nenhuma dessas bobeiras. Por isso conseguiu ir em paz com a louça lavada, o guarda-roupa arrumado e a lista de tarefas completamente em ordem".
Se essa é uma lápide que lhe traz alegria, pode prosseguir com a procrastinação, sem problemas. Mas eu sinto que essa seria a minha própria definição de uma vida medíocre. Mesmo sabendo que, e essa é uma particularidade minha que eu espero que você não partilhe, eu tenha questões sérias para revolver sobre acumulação, rotinas e produtividade (ou seja, mesmo sendo uma pessoa que precisa objetivamente investir mais tempo em colocar a casa e a vida em ordem, pra ontem).
A minha "desconexão" com a Sketchbook Skool, por exemplo, vem mais de uma diferença cultural do que operacional, por exemplo. Eu não tenho problema com as artes que eles fazem, ou o que estão aprendendo. Eu não consigo é me relacionar com a cultura americana e europeia, onde a vida e as coisas estão tão bem encaminhadas em que é possível, aceitável e incentivável que você consiga investir tanto tempo em um hobbie. Essa realidade na qual "Decidi começar a pintar, então peguei um dos cômodos *sobrando* aqui em casa e transformei no meu estúdio" acaba mais me desnorteando do que ajudando. Eu tenho uma prancheta que me aterroriza esmagada no meio da sala de casa -- isso ainda é assunto pra outro momento -- mas na maioria das vezes tenho que acomodar as coisas no colo, sentada na minha cama, com minha filha pulando atrás de mim... Ou seja, tem que ter muito comprometimento e vontade pra não dizer "sabe, talvez essa coisa não seja mesmo pra mim".
Se você chegou até aqui: obrigada acima de tudo. Sendo ou não um regular nesse blog, eu gostaria de saber qual a sua maior dificuldade, seus questionamentos, o que sente falta, o que faz você cair em blogs como esse. Pode abrir o coração sem medo! Se ficar com vergonha dos comentários, está valendo mandar e-mail pelo endereço disponível na página de Contato.
Para encerrar, um trailer do novo curso da Sketchbook Skool, só pra animar.
2 Comentários
Cheguei a seu blog por uma pesquisa sobre EAD, venho acompanhando, e eis que vejo este artigo... uau.
ResponderExcluirNão tenho muito que dizer, além de que esta é uma questão que me toca a muito tempo, e a muitos outros artistas e "quase" artistas.
Por esta busca, em saber o que significa seu trabalho, para que, ou para quem você passa horas desenhando; por esta busca, cheguei na resposta mais obvia possível :
Quando desenho busco eu mesmo... isso mesmo, quando desenho acabo encontrando eu mesmo...
Foi difícil de entender isso, é verdade. E desde que descobri este segredo, meus desenhos, rabiscos, garranchos e tudo o mais, ganharam alma.
Já passo um pouco dos 3.6 mas pretendo desenhar até aguentar, pois quero encher o mundo com meus desenhos e comigo... Agora se alguem gosta ou não... isso é outra história.
Oi Abel! Obrigada pelo depoimento, me alegra muito saber que eu não sou a única nesse quase que eterno questionamento. Acho que você está certo: é a gente que a gente busca, e é a gente que a gente encontra -- toda vez que a gente foca nos outros (se eles gostam, ou no que vão achar) a gente acaba perdendo a vontade, a coragem e o foco! Abraços.
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